João Gilberto faz falta, sim.Mas faz para quem?

16/12/2013 17:31

Desde outubro deste ano está no ar pela rede Globo de televisão, o programa "The Voice Brasil", reality show que tem como proposta achar a melhor voz entre os participantes. São cantores de diversos gêneros, timbres e estilos que se dividem entre times, liderados por Claudia Leitte, Lulu Santos, Carlinhos Brown e Daniel. Entre as fases de eliminação, existe a “batalha” onde dois participantes se enfrentam ao cantar uma mesma música em um ringue cenográfico, vencendo quem melhor canta e interpreta a música. E é de um episódio específico desta fase que vou falar, aliás, de uma batalha específica

.No dia 21/11/13, Maylsson e Xandy, dois participantes originários do pagode e do R&B, batalharam com a música “Adeus, América”, originalmente cantada por João Gilberto, e que ao meu gosto foi uma das apresentações mais belas, emocionantes e divertidas.Segue o link com o vídeo da batalha

Quando a música acabou e partiu-se para a rodada de comentários dos técnicos.Lulu Santos dissertou sobre o seu desgosto diante da interpretação de Maylsson e Xandy, devido ao excesso de “r&bzação”, trejeitos e mudanças de melodia (os chamado runs ou melismas) sobre a música de João Gilberto, que originalmente é uma bossa nova, tocada só no violão, cantada bem baixinha com uma letra sobre o adeus de um brasileiro ao cotidiano americano, o que se tornou contraditório à forma de cantar dos candidatos. Bem, de fato foi o que aconteceu, e opinião e gosto muitas vezes nem valem serem discutidos. Mas o que será que tem por trás do discurso de Lulu?

O pagode contemporâneo (assim como grande parte da música pop brasileira) hoje passa por um processo de fortes influências da música americana, em especial o Hip-Hop e R&B. Por exemplo, a música e a estética de Tiaguinho, hoje cantor solo e ex-vocalista do grupo de pagode Exaltasamba, possuem claras referências à cantores americanos como Ne-yo e Usher. E é dessa “escola” que Maylsson e Xandy vêm. Sendo assim, o que esperar que esses dois jovens negros, de periferia fizessem com a música ( que assumidamente não conheciam) de João Gilberto? Um samba só para eles oras, como diz a própria letra da música!

João Gilberto em seus não-executados shows de 2011, cobrou entre R$ 500,00 a R$ 1.400 em seus ingressos. Em paralelo, um show de pagode, em média possui valor máximo de ingresso de R$ 300, isso quando estamos falando de áreas vips muito bem “regadas”. Partindo para um recorte social, o que esperar do público dessas duas vertentes? E afinal, o que de fato é tão valoroso que precisa ser conservado, e nunca ressignificado? A nossa cultura, para esse grande público fã de pagode é muito mais representada por figuras como de Maylsson e Xandy, do que por nomes da bossa nova, que representam uma pequena parcela da população.

Acredito que entre todas essas questões, é preciso levar em consideração que os processos pós-modernos de globalização e hibridização das identidades trazem consigo diversas referências, que como a americana tendem a dominar a produção musical brasileira, o que pode e deve ser problematizado.Porém, neste caso específico, é preciso pontuar a identificação que acontece entre os dois gêneros, que como disse Maria Gadú na polêmica discussão que se deu após a fala de Lulu Santos : “São dois cantos de gueto, o Pagode e o R&B”.Não esquecendo claro do jazz, uma das influências da bossa nova, que apesar de toda sua aclamação pela classe média/alta, é originalmente da periferia americana.

Logo, tudo me leva às seguintes percepções (que não necessariamente são regras): O samba de João Gilberto a gente escuta no som de casa, olhando a vista da praia de Ipanema, tomando um vinho e discutindo sobre literatura e artes visuais.Já o samba da interpretação de Maylsson e Xandy, escutamos nas “biroscas” das esquinas da Zona Norte e Oeste do Rio de Janeiro, comendo “churrasquinho de gato” com farofa de ovo, bebendo cerveja.Uma breve analogia, mas que pode muito bem resumir do que estou falando.Para concluir, sem entrar no mérito das dinâmicas do The Voice (sejam elas programadas ou não) ,espero que Lulu Santos e todos aqueles que partilham de sua opinião, se atentem mais ao contexto e aos processos históricos e sociais que quem canta sofre, e esteja mais atento aos caminhos que a Cultura faz, principalmente a que vem do gueto.

Lulu, ao fim da discussão disse: “Só digo uma coisa, que falta faz João Gilberto.”, enquanto a minha questão é: Que falta faz João Gilberto,sim.Mas faz para quem?.

 
Texto por Negra Maria